A CAIXA DO MEU PAI.
Falar do meu pai é como abrir uma caixa trancada há muitos anos. Não qualquer caixa, mas uma daquelas guardadas com cuidado, escondida dentro de outras, em um canto que só se acessa quando a saudade ou a coragem tomam conta. Dentro dela, há um mosaico de lembranças que dançam entre o riso e o silêncio, entre a presença e a ausência.
Vejo meu pai com seu sorriso escancarado e tímido, contando as piadas sem graça que só ele ria, até nos fazer rir também. Lembro dos causos que ele vivia a narrar, com minha mãe ao lado confirmando cada detalhe. Naqueles momentos, ele era gigante — um pilar de força e inteligência. Engenheiro, professor, fluente em francês. Um homem que parecia saber tudo, mas que, como descobri depois, não estava imune às ironias da vida.
Quando a doença chegou, a força começou a dar lugar à fragilidade. O “Mal de Parkinson” — um nome que já não se usa, como se a suavização da linguagem pudesse aliviar o peso do diagnóstico. Ele era um dos 20% que evoluem para a demência, contrariando até as certezas do neurologista. E ali, entre as lacunas de memória e a perda de habilidades que um dia foram naturais, meu pai começou a se perder de nós — e nós dele.
O homem que me ensinava matemática, que lia os textos de história para mim, que me trazia um saco cheio de dadinhos de amendoim quando voltava de viagem, já não conseguia somar dois números. Perder essa parte dele foi como perder pedaços de mim mesma. Ainda assim, o amor estava ali, mesmo nas brigas da adolescência, mesmo no silêncio desconfortável que às vezes nos separava. Ele era meu pai — o homem que me carregou até o altar no dia do meu casamento, com passos trôpegos, mas com o coração cheio de significado.
Acompanhar a trajetória de sua doença foi como testemunhar uma despedida que nunca acabava. O esquecimento, os momentos de confusão, o olhar perdido. As pequenas quedas que se tornaram grandes marcos. Lembro do dia em que ele chorou na ressonância magnética, engolido por uma fobia que ele nunca havia confessado. Foi a primeira vez que o vi desabar, e eu desabei junto.
Houve também momentos de ternura. Meu tio, que virou seu cuidador e companheiro, o levava para tomar café na praça e comer pão de queijo quase que diariamente. Pequenos respiros de normalidade em meio ao caos. Mas, aos poucos, o chão foi sendo tirado debaixo dos nossos pés. Uma nova queda, uma nova limitação. Até que meu pai, o gigante da minha infância, se tornou um homem acamado, preso a um corpo que já não respondia, enquanto nós, sua família, tentávamos lidar com um luto que parecia não ter fim.
Hoje, ele tem 80 anos e vive há quase 20 em um leito. Por muito tempo, eu culpei Deus. Rompi com Ele. Gritei em silêncio. Mas, ao longo dos anos, entre uma filha, um divórcio, a medicina e muitas sessões de terapia, percebi que precisava reconsiderar essa conversa. Talvez porque crescer signifique aprender a fazer as pazes com o que não podemos mudar.
Ainda é difícil. Quando abro essa caixa de memórias, o choro vem como de uma criança. Mas percebo que o amor que sinto por meu pai é tão grande quanto a dor de tê-lo perdido em vida. Aquele homem que dançava na sala com minha mãe, que ria das próprias piadas e que trazia doces de viagem continua aqui, em algum lugar dentro de mim. Guardado na caixa, sim. Mas sempre presente. Sempre meu pai.
Feliz Natal.
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